
Os rituais sagrados do peiote: História, significado e legado cultural
O peiote atravessou diferentes tribos e gerações, unindo comunidades indígenas numa tradição espiritual sagrada. Conheça a história, organização, música e crenças fundamentais que marcam os rituais do peiote.
Peyote, conhecido cientificamente como Lophophora williamsii, é um cato originário do sul dos Estados Unidos e do norte do México. Com elevado teor de mescalina, o peyote proporciona profundas experiências visionárias e é fundamental nas práticas espirituais de certos povos nativos americanos.
Neste guia, fazemos uma análise detalhada sobre os rituais sagrados do peyote. Iremos abordar de que forma o peyote é utilizado tradicionalmente, como se organiza e decorre uma cerimónia de peyote, bem como a importância da música, orações e outros rituais associados. Além disso, exploramos as crenças e a história da Native American Church, entidade que mantém viva a realização destas cerimónias nos seus rituais espirituais.
Nota: Na Zamnesia, não defendemos nem incentivamos o uso recreativo do peyote. O objetivo deste artigo é apenas informativo.
Se decidir experimentar o peyote ou aprofundar o seu conhecimento sobre as cerimónias, faça-o com respeito. Esta planta sagrada é venerada há séculos e não se trata de uma substância para lazer.
História e origens dos rituais de peyote
O peiote é originário de uma zona bastante restrita da América do Norte, mais concretamente do deserto de Chihuahua, que abrange o norte do México e parte do sul do Texas. Os vestígios arqueológicos mais antigos do uso de peiote pelo ser humano foram encontrados nas Grutas de Shumla e remontam a cerca de 6.000 anos.
Situadas junto ao Rio Grande, no sudoeste do Texas, as Grutas de Shumla são abrigos naturais pré-históricos escavados na rocha. Nos anos 1930, arqueólogos encontraram amostras de peiote numa dessas grutas. Testes de datação por radiocarbono revelaram que estas amostras terão cerca de 4.200 a.C. (Terry et al., 2006).
Curiosamente, as amostras não eram apenas fragmentos naturais do cato peiote. Tratava-se de figuras moldadas em pequenos discos ou botões, elaborados com peiote moído e outras plantas. Com um teor de cerca de 2% de mescalina, crê-se que eram utilizados em rituais de cariz espiritual.
Perto das Grutas de Shumla, foi ainda descoberta uma pintura rupestre conhecida como o Mural do Xamã Branco. Esta pintura, que terá sido realizada há aproximadamente 4.000 anos, representa figuras antropomórficas e tem sido associada ao nascimento do tempo, práticas de xamanismo e ao consumo de peiote.
Igreja Nativa Americana e a legalização do peiote
Uma das formas mais icónicas de utilização do peiote encontra-se nas cerimónias organizadas pela Igreja Nativa Americana. Curiosamente, estas práticas são bastante recentes, tendo surgido entre meados do século XIX e finais desse mesmo século, no contexto do deslocamento forçado de tribos indígenas após a Lei de Remoção dos Índios de 1830.
Tribos como os Kiowa, Comanche, Apache e outras terão tomado contacto com o peiote através de povos indígenas do norte do México, como os Huichol, Cora e Tarahumara. Um dos maiores defensores do peiote e da tradição do peiotismo foi Quanah Parker, um dos líderes Comanche e um dos fundadores da Igreja Nativa Americana (NAC), que, segundo consta, terá superado uma doença grave recorrendo ao cato (Jay, 2019).
Naturalmente, o uso do peiote entre os povos indígenas enfrentou forte oposição de natureza legal, racial e religiosa, sobretudo por parte de missionários cristãos e agentes do governo (autoridades dos EUA ou Canadá responsáveis pela relação com as tribos indígenas). Em 1917, estados como o Colorado e o Utah proibiram o peiote a nível local. Já em 1918, foi apresentada no Congresso dos EUA uma proposta para banir o peiote em todo o país; a medida foi aprovada na Câmara dos Representantes mas não passou no Senado (Dawson, 2018).
Ainda assim, o peiotismo tornou-se parte fundamental da vida nas reservas indígenas, aproximando amigos e familiares através do canto e oração. O antropólogo Omer Stewart (1987) destacou que as cerimónias realizadas no Oklahoma se caracterizavam por um "tom moral elevado", principalmente em comparação com as celebrações tradicionais do México. Foi aqui que germinou a semente da Igreja Nativa Americana.
Fundada no Oklahoma em 1918, as raízes da Igreja Nativa Americana remontam aos anos 1890, altura em que o peiote chegou às comunidades das Grandes Planícies. As crenças e práticas da igreja combinam elementos do cristianismo com tradições espirituais indígenas, em diferentes graus (The Pluralism Project, n.d.).
Por exemplo, a NAC é monoteísta e acredita num ser supremo, o Grande Espírito, rejeita a autoridade papal e adota algumas características protestantes. No entanto, existem variadíssimas correntes dentro da igreja, sendo as formas Cross Fire e Half Moon das mais conhecidas.
Eventualmente, o governo dos EUA proibiu o peiote, classificando-o como substância da Tabela 1 após a aprovação do Controlled Substances Act em 1970. Contudo, os membros da Igreja Nativa Americana recuperaram o direito legal de usar o peiote em 1978, graças ao American Indian Religious Freedom Act – uma lei que concedeu uma exceção explícita, permitindo aos membros da NAC o uso do peiote nas suas práticas espirituais.
O percurso de uma cerimónia de peiote
De seguida, vamos analisar como está organizada uma cerimónia típica de peyote. Esta descrição baseia-se nos relatos e observações de Omer Stewart – que participou em várias celebrações entre os Kiowa e outros povos indígenas – bem como em fontes mais recentes.
Nos Estados Unidos e Canadá, existem duas principais variantes deste ritual: o "Cross Fire" e o "Half Moon", designações que provêm das duas maiores seitas da Native American Church. Ainda assim, os líderes das cerimónias de peyote (conhecidos como peyotistas, chefes de peyote ou roadmen) têm liberdade para realizar as sessões segundo as suas preferências, sendo comum encontrarem-se pequenas diferenças no desenrolar do ritual.
As celebrações "Cross Fire" e "Half Moon" diferem em vários aspetos. Por exemplo, o ritual "Half Moon" inclui o consumo de tabaco, enquanto o "Cross Fire" assume um tom mais bíblico e é habitual que a Bíblia esteja exposta durante a cerimónia, terminando-se muitas vezes com um sermão baseado em passagens bíblicas.
Início do ritual e disposição dos participantes
As cerimónias de peyote realizam-se normalmente em tipis. Os participantes costumam reunir-se antes do pôr-do-sol, embora alguns líderes espirituais possam convidá-los a chegar mais cedo para ajudar na montagem do tipi ou na colheita do peyote que será consumido durante a cerimónia.
Os participantes sentam-se geralmente em círculo em torno do fogo central e do altar. Em certas ocasiões, o líder pode optar por separar homens e mulheres, ou colocar os homens na linha da frente. Alguns líderes seguem a tradição de convidar para o espaço, primeiro, os seus assistentes—como o responsável pelo fogo, o percussionista e o encarregado do cedro—seguindo-se todos os homens, e por fim as mulheres e crianças. A Igreja Nativo-Americana considera o consumo de peyote seguro para crianças, bem como para mulheres grávidas ou a amamentar.
De seguida, realiza-se o ritual do cedro, que inclui queimar e defumar madeira de cedro aromático com o objectivo de purificar o espaço cerimonial e todos os presentes. O líder espiritual vira-se para este e faz uma oração de abertura, evocando os quatro pontos cardeais e o Grande Espírito.
Ingestão e oração inicial
De seguida, o peiote é apresentado e consagrado. Embora a forma mais tradicional de consumo de peiote seja mastigar os chamados "botões" frescos ou secos do cato, nas cerimónias mais modernas ou orientadas para turistas, pode ser oferecido chá de peiote ou cápsulas de peiote em pó (embora estes métodos não sejam tradicionais e, por vezes, sejam desaprovados).
O líder espiritual pode convidar os participantes a partilhar a sua intenção para a cerimónia antes de ingerirem o cato. Pouco depois de todos terem consumido o peiote, segue-se uma sequência de preces, acompanhada por cânticos e música tradicional ligada ao ritual do peiote.
Chamada da água à meia-noite
Por volta da meia-noite, faz-se uma pausa e uma assistente designada (conhecida tradicionalmente como Mulher da Água) traz água para ser partilhada entre todos os participantes. Antes de a água circular, é feita uma oração, e alguns guias da cerimónia explicam que este momento simboliza a purificação e o recomeço. A fogueira é reacesa e segue-se mais uma ronda de cânticos e preces. Nesta fase, é comum que os participantes estejam a sentir de forma mais intensa os efeitos do peiote.
Chamamento da água ao amanhecer e ritual do nascer do sol
Perto do amanhecer, ocorre o segundo e último chamado para a água, assinalando o término da cerimónia. Podem ser feitas as orações finais, e os participantes são geralmente convidados a sentar-se, cantar e, por vezes, a consumir tabaco virados para o leste, enquanto o sol nasce. Normalmente, a manhã termina com um pequeno-almoço comunitário.
Música cerimonial de peiote
A música ocupa um lugar de destaque nas cerimónias de peiote, sendo composta por cantos acompanhados por um tambor de água e uma maraca feita de cabaça. Embora existam algumas variações entre tribos, a tradição musical mantém-se bastante uniforme. Existem quatro cantos fundamentais em todas as cerimónias de peiote:
- Canto de abertura: Invoca o Grande Espírito e estabelece o ambiente para o início da cerimónia.
- Canto da água noturna: Marcado pelo ritual da água à meia-noite.
- Canto do nascer do sol: Representa o renascimento espiritual.
- Canto de encerramento: Atua como agradecimento e sinaliza o final da cerimónia.
Dentre os instrumentos usados, destacam-se:
- A voz humana, que conduz a melodia e transmite a intenção espiritual das canções.
- O tambor de água, preparado com água fresca em cada cerimónia. O som e o tom do tambor variam conforme o movimento da água, resultando num efeito acústico natural e envolvente.
- A maraca de cabaça, geralmente ornamentada, que é tradicionalmente empunhada pelos líderes dos cantos.
Quando os participantes consomem o peiote, a música inicia e segue uma ordem cerimonial bastante rigorosa. Um bastão decorado, chamado também de símbolo de autoridade, juntamente com a maraca e uma pena de águia, circulam no sentido dos ponteiros do relógio pelo círculo. A pessoa com o bastão lidera o canto. O primeiro cantor entoa quatro cantos de abertura enquanto segura a maraca e o bastão, acompanhado pelo tambor. Depois, os instrumentos passam de mãos em mãos e todos são convidados a cantar conjuntos de quatro canções, repetidos quatro vezes.
Nas práticas tradicionais, as mulheres não costumam cantar ou tocar instrumentos nas cerimónias de peiote, participando sobretudo através de oração e presença. No entanto, algumas celebrações contemporâneas já integram a participação feminina na execução da música.
Estes cantos e toques de tambor perduram ao longo de toda a cerimónia, com interrupções apenas durante os momentos dedicados à água. A estrutura musical contínua garante o ambiente espiritual, funcionando como uma prece através do som.
Crenças e valores associados ao peiotismo
Apesar de à primeira vista os rituais com peiote poderem parecer simples, encerram um profundo significado espiritual. Esta é uma prática sagrada e comunitária, com raízes que atravessam séculos de tradição e que assenta em visões do mundo muito definidas, partilhando valores centrais, mesmo entre diferentes tribos.
Entre as crenças essenciais do peiote estão:
- O Grande Espírito: Os membros da Igreja Nativo-Americana acreditam numa entidade suprema, designada de Grande Espírito, Grande Deus ou Criador. É a origem de toda a vida e rege tanto a natureza como o plano espiritual. Todas as canções e preces das cerimónias dirigem-se ao Grande Espírito em busca de orientação, cura, alinhamento espiritual e verdade.
- Peiote, o mensageiro sagrado: O peiote é visto como muito mais do que um simples cato psicadélico; é uma medicina sagrada, uma entidade espiritual e o meio de comunicação com o Grande Espírito. Existe um grande respeito por esta planta, desde os peioteiros (quem cultiva e fornece o peiote) até aos roadmen, seus assistentes e todos os participantes nas cerimónias.
- Cerimónias como caminho para a purificação e clareza espiritual: Os rituais com peiote podem ter diversos propósitos, como procurar cura física ou emocional, obter orientação nas decisões importantes da vida, ou encontrar o sentido para o próprio caminho. No entanto, o objetivo principal é sempre a purificação e o fortalecimento espiritual, alcançando um maior alinhamento com o propósito pessoal e a verdade interior. Muitos participantes afirmam que estas cerimónias lhes proporcionam um entendimento profundo sobre si próprios.
- O papel fundamental da oração: A oração está no centro da experiência com peiote, sendo considerada de enorme poder, sobretudo quando realizada em conjunto. Por isso, é sempre incentivada — ou mesmo exigida — a participação de todos em preces e canções, de forma a unir o grupo e a intenção comum.
- Pureza e humildade: O peiote ensina que apenas através de abertura, sinceridade e vontade se pode aceder à cura e à orientação espiritual. Cada participante pode ter motivações distintas para estar na cerimónia, mas todos são chamados a participar com um coração puro, mente humilde e intenções positivas. Alguns roadmen recomendam o jejum ou a abstinência de certas substâncias antes da cerimónia; contudo, o fundamental é o respeito e a abertura de espírito em cada momento.
- Tradição viva: Embora os rituais com peiote obedeçam a uma estrutura, também são dinâmicos e abertos a transformações. O peiotismo é visto como uma tradição em constante evolução, adaptando-se ao presente através do roadman e da intenção do momento.
- O número sagrado quatro: Tal como os quatro pontos cardeais (norte, sul, este e oeste), o número quatro simboliza o equilíbrio e a orientação cósmica para o peiotismo, estando presente em vários momentos da cerimónia. Por exemplo, costuma-se encorajar a ingestão de quatro botões de peiote no início do ritual e a realização de quatro rondas de canções. Alguns roadmen queimam ainda quatro paus de cedro nas fases iniciais ou conduzem quatro rituais de água sagrada.
Peiotismo: Uma tradição de reverência e renovação
O peiote é muito mais do que um simples cato com propriedades psicoativas: trata-se de uma planta sagrada, com profundo significado cerimonial e espiritual para diversas comunidades indígenas norte-americanas. Longe de ser uma substância recreativa, o peiote ocupa um papel central numa religião estruturada — o peyotismo — e está no centro dos rituais celebrados pela Igreja Nativa Americana.
Através de gerações e entre diferentes tribos, o peiote e as cerimónias associadas ao seu uso têm contribuído para promover a cura e a ligação espiritual destas comunidades ao divino. Se quiser conhecer melhor esta tradição, consulte o nosso artigo sobre o que é o peiote e aprofunde o seu conhecimento sobre este cato sagrado. Além disso, por que não ajudar a proteger esta espécie vulnerável, cultivando-a em casa com uma das nossas plantas de peiote já enraizadas ou aprendendo a cultivar peiote a partir de sementes?
- Dawson, & A. S. (2018). In Peyote effect: From the Inquisition to the War on Drugs - https://academic.oup.com
- Jay, & M. (9 augustus 2019). The Encounter That Introduced Peyote to Western Science, The Encounter That Introduced Peyote to Western Science - https://chacruna.net
- Terry, M., Steelman, K. L., Guilderson, T., Dering, P., & Rowe, M. W. (2006/07/01). Lower Pecos and Coahuila peyote: new radiocarbon dates - https://www.sciencedirect.com
- The Pluralism Project. (z.d.). (n.d.). Native American Church - https://pluralism.org
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