
À procura de uma substância de iniciação — canábis vs. álcool
Durante décadas, ouvimos pais, professores, cientistas e políticos referirem-se à canábis como uma droga de iniciação. Mas será que lidar com o problema do consumo e dependência de drogas se resume realmente a responsabilizar uma única substância? E, se assim for, será que essa substância deveria sequer ser a canábis?
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Para muitos de nós que crescemos nas décadas de 80, 90 e 2000, o conceito de "droga de passagem" esteve sempre presente na educação sobre drogas — aquela ideia de que fumar um charro numa noite pode levar a algo muito pior no dia seguinte.
Cresci na Suíça durante os anos 90 e, para me mostrar os supostos perigos, os meus pais levavam-me de carro a passar pelo famoso Platzspitz, em Zurique, dizendo: "É isto que acontece a quem consome drogas". Na altura, a cannabis era vista como um bilhete seguro para se juntar aos toxicodependentes caídos no frio.
Nas escolas e nas campanhas educativas, a mensagem era sempre insistente. Ainda hoje ouvimos pais, políticos e até cientistas a debater se substâncias como o cannabis servem realmente de trampolim para outras drogas "mais pesadas".
Mas e o álcool? É completamente legal e fácil de obter. Tal como qualquer droga, tem efeitos notórios no nosso comportamento e nas decisões que tomamos. Não será, afinal, o álcool a verdadeira "droga de iniciação"?
Como o álcool afeta o cérebro
O álcool é especialista numa coisa: alterar a forma como nos sentimos. Esta mudança ocorre porque o álcool interfere na comunicação entre as células cerebrais.
As células do cérebro, conhecidas por neurónios, comunicam entre si através de neurotransmissores, pequenas substâncias químicas que transmitem sinais de um neurónio para outro.
O álcool tem um impacto direto na transmissão de certos neurotransmissores. De forma específica, reduz a atividade do glutamato, um neurotransmissor excitador, ao mesmo tempo que estimula a ação do GABA, um neurotransmissor inibidor. O glutamato incentiva os neurónios a dispararem, enquanto o GABA faz exatamente o oposto, tornando-os menos ativos.
Como resultado, o fluxo de informação no cérebro desacelera. É por isso que, quando estamos sob o efeito do álcool, sentimos, percebemos e reparamos em menos coisas. Esta desaceleração também explica porque podemos ficar presos a um único pensamento, como "esta é a melhor noite de sempre!". Estes são os motivos pelos quais o álcool é classificado como um depressor, já que diminui a atividade do nosso sistema nervoso central e periférico.
Curiosamente, embora o álcool impeça certas funções cerebrais, não nos trava socialmente. Aliás, um dos grandes motivos pelos quais apreciamos o álcool prende-se com o facto de nos libertar das inibições, permitindo que, em contexto social, sejamos mais espontâneos e descontraídos.
O álcool provoca ainda uma sensação evidente de euforia que, combinada com a diminuição das inibições sociais, dá-nos aquela coragem súbita para conversar com desconhecidos, dançar em cima de uma mesa ao som da Shania Twain, ou outras façanhas semelhantes.
Em suma, o sucesso do álcool como facilitador social deve-se precisamente à sua capacidade de diminuir as nossas inibições e encorajar comportamentos fora do habitual, tanto positivos como negativos. Por isso, quando se procura um culpado para o fenómeno do consumo global de drogas, dificilmente se encontra "porta de entrada" mais eficaz do que o álcool.
Se calhar, ao ler isto, está a pensar: “a canábis, tal como o álcool, também mexe nas inibições, nas decisões e no comportamento”. E sim, tem razão; para muitas pessoas, o consumo de canábis também reduz as barreiras sociais, criativas e até sexuais. Mas será que sentir o efeito da canábis torna mesmo as pessoas mais propensas a experimentar substâncias ainda mais fortes?
A canábis não é uma porta de entrada
Em 2016, o presidente do US Institute for Behavior and Health, Dr. Robert L. DuPont, publicou uma coluna no New York Times intitulada "A canábis comprovadamente é uma droga de passagem"[1]. O Dr. DuPont argumenta com a lógica habitual de que a maioria dos consumidores de heroína começou por experimentar canábis.
E é difícil contrariar esta ideia, visto que é um facto que grande parte dos dependentes de heroína terá experimentado canábis. No entanto, isso não significa que a maioria dos consumidores de canábis venha a experimentar heroína ou outras drogas pesadas. Pelo contrário, os estudos indicam que a maioria das pessoas que experimentam canábis nem sequer se tornam utilizadores frequentes.
Um inquérito de 2017 levado a cabo pela Universidade Marist em parceria com a Yahoo News entrevistou 1.122 adultos nos EUA sobre as suas experiências com canábis. A pesquisa revelou que 52% dos entrevistados já tinham experimentado canábis, mas apenas 22% afirmaram consumir atualmente (definido pelo estudo como ter utilizado pelo menos uma ou duas vezes no último ano). Destes, somente 14% disseram consumir canábis de forma regular – pelo menos uma ou duas vezes por mês.
A probabilidade de um consumidor de canábis desenvolver dependência ou transtorno de uso de canábis é ainda mais baixa. Segundo dados do US National Institute on Drug Abuse, cerca de 9% das pessoas que consomem canábis acabam por desenvolver algum grau de dependência.
No relatório “The Real Gateway Drug”[3], o American Addiction Centers sublinha que a canábis não costuma ser a primeira substância experimentada. Nesta publicação, foram ouvidos mais de 1.000 americanos sobre como começaram – e eventualmente progrediram – no seu percurso de experimentação de drogas. Entre quem já consumiu álcool, quase dois terços afirmaram que foi essa a primeira substância experimentada. 23,8% referiram o tabaco como a substância inicial, e apenas 18% indicaram que começaram pela canábis.
Alguns estudos indicam ainda que a canábis pode ajudar a afastar as pessoas de outras substâncias mais viciantes. Uma investigação de 2014 publicada no The Journal of The American Medical Association destacou que os estados norte-americanos com legislação de canábis medicinal registaram menos 25% de mortes por overdose associadas a opiáceos. Isto deve-se ao facto de a canábis proporcionar alívio mais eficaz da dor e outros sintomas de doenças, sem os riscos para a saúde impostos por medicamentos sujeitos a receita médica.
Reavaliar a teoria da porta de entrada
Afinal, onde é que isto nos deixa em relação à teoria da porta de entrada? Será que é apenas um mito, ou existe verdade na ideia de que experimentar certas drogas pode aumentar a probabilidade de recorrer a outras?
Há de facto investigações que sugerem que algumas substâncias podem estimular circuitos de recompensa no cérebro, tornando mais apelativo o consumo de outras drogas.
Um estudo de 2017 publicado na Science Advances revelou que ratos expostos ao álcool tinham maior tendência para acionar uma alavanca que libertava cocaína. Isto demonstra uma interessante ligação entre estas duas substâncias em particular.
Mesmo o relatório dos American Addiction Centers já referido evidenciou padrões no consumo de diferentes substâncias; alucinogénios como os cogumelos de psilocibina e o LSD, por exemplo, surgem frequentemente como a quarta substância consumida, e a cocaína como a quinta.
Estas conclusões são intrigantes e mostram que vale a pena investigar mais a fundo o abuso de drogas e os seus mecanismos. No entanto, existe prova bastante consistente de que fatores sociais como saúde mental e pobreza desempenham um papel muito mais relevante enquanto verdadeiras "portas de entrada" para o consumo e dependência de drogas.
A própria dinâmica do mercado ilegal influencia muito os padrões de consumo. Por exemplo, nos Países Baixos, o uso de canábis e de cogumelos alucinogénios é bem menor do que em outras regiões do mundo onde ambas continuam proibidas.
Encerrando o debate da porta de entrada
Então, será que experimentar uma substância aumenta realmente a probabilidade de consumir outra? Talvez. No entanto, compreender a dependência das drogas e as razões que levam alguém a optar por uma ou outra substância é um tema bastante mais complexo do que simplesmente culpar um único produto.
Se, porém, acreditas que as drogas de iniciação são uma realidade, sugiro que olhes primeiro para o álcool e para a forma permissiva com que a nossa sociedade lida com ele, em vez de apontares o dedo à cannabis.
- (n.d.). Marijuana Has Proven to Be a Gateway Drug - NYTimes.com - https://www.nytimes.com
- (n.d.). Yahoo News/Marist Poll | Home of the Marist Poll - http://maristpoll.marist.edu
- (n.d.). search - https://americanaddictioncenters.org
- (n.d.). States with medical pot see nearly 25 percent fewer fatal prescription drug overdoses — RT USA News - https://www.rt.com
- (n.d.). Prior alcohol use enhances vulnerability to compulsive cocaine self-administration by promoting degradation of HDAC4 and HDAC5 | Science Advances - http://advances.sciencemag.org
- (n.d.). A Comeback for the Gateway Drug Theory? (Published 2017) - https://www.nytimes.com