
Devem os psicadélicos ser considerados medicamentos?
As drogas psicadélicas transportam-nos para lugares extraordinários e revelam-nos aspetos de nós próprios que, por vezes, permanecem ocultos. Muitos concordam que possuem propriedades curativas, mas será que esta é a sua principal função? Neste artigo, analisamos se os psicadélicos devem ser considerados "medicamentos".
Grande parte do mundo começa agora a reconhecer o potencial medicinal dos psicadélicos. À medida que esta tendência ganha força, estas substâncias estão a integrar-se cada vez mais no quotidiano e o estigma em torno do seu uso tem vindo a desaparecer.
No entanto, será que os psicadélicos devem ser vistos, em primeiro lugar, como medicamentos? Neste artigo, defendo que, embora os psicadélicos possam ser utilizados com fins terapêuticos, o seu potencial vai muito além da simples cura. Se nos limitarmos a considerá-los apenas como medicamentos, estaremos a reduzir a importância destas substâncias e aquilo que podem realmente proporcionar.
O que é um medicamento?
O termo "medicina" pode referir-se tanto a um conjunto de práticas para cuidar da saúde, como a substâncias utilizadas para tratar doenças. Vejamos duas definições principais.
Em primeiro lugar, medicina pode dizer respeito à prática de tratar doenças ou lesões — por exemplo, quando um médico exerce medicina. Segundo o Cambridge Dictionary, medicina consiste em: "tratamento de doenças ou lesões, ou o estudo sobre isso".
Por outro lado, medicina pode designar uma substância, frequentemente um medicamento, usada para tratar uma condição específica ou ajudar na recuperação após uma lesão. De acordo com o Cambridge Dictionary, neste sentido, medicina é: "uma substância, especialmente sob a forma de líquido ou comprimido, utilizada no tratamento de doenças ou lesões".
De forma mais abrangente, a medicina inclui também a manutenção da saúde e a prevenção de doenças ou lesões, evitando assim a necessidade de tratamentos.
A medicina pressupõe um problema
Independentemente da definição, a medicina e a sua prática existem, inevitavelmente, em ligação à doença e às lesões — ou seja, a problemas. Mesmo a medicina preventiva tem como objectivo manter a saúde para evitar o surgimento de complicações.
Assim, os medicamentos só deverão ser tomados ou utilizados para tratar ou prevenir problemas concretos. Quando não existe nenhum problema real ou iminente, a utilização de medicamentos é desnecessária e pode até tornar-se prejudicial.
O que são psicadélicos?
Os psicadélicos pertencem a uma categoria de substâncias psicoativas com efeitos muito distintos. O termo "psicadélico" teve origem numa conversa entre Aldous Huxley e Humphrey Osmond, sendo posteriormente introduzido por Osmond num artigo académico. Do ponto de vista etimológico, a palavra tem raízes no grego antigo:
- psykhē: "mente"
- dēloun: "revelar" ou "tornar visível"
A fusão destes dois termos formou o moderno "psicadélico", que se pode traduzir aproximadamente como "revelador da mente" — sugerindo uma substância capaz de expor ou tornar visível aquilo que está na nossa mente.
Assim, drogas psicadélicas são consideradas aquelas que oferecem ao utilizador uma clareza e entendimento invulgares acerca do seu mundo interior. Frequentemente, acredita-se que estes efeitos acontecem porque a substância reduz a influência do ego — a parte da mente responsável pelas ilusões sobre a identidade e que estrutura o nosso sentido do "eu".
Doses elevadas de psicadélicos podem levar ao chamado "morte do ego", um estado em que o ego se dissolve totalmente e a pessoa perde a noção de si mesma por algum tempo. Estas experiências podem variar entre agradáveis e profundamente desconfortáveis, mas geralmente são percebidas como momentos marcantes e significativos
Outro traço comum dos psicadélicos é o fenómeno do "trip" — expressão que descreve as alterações visuais e auditivas frequentemente associadas ao consumo destes compostos. Para muitos, é este aspeto o que mais distingue os psicadélicos. Contudo, o que realmente os distingue é a capacidade de oferecerem profundas perceções sobre o próprio indivíduo; há outras substâncias que provocam alucinações, mas não pertencem à família dos psicadélicos.
Entre as principais drogas psicadélicas destacam-se:
- LSD (ácido)
- Psilocibina (cogumelos mágicos)
- Mescalina (peyote, cato San Pedro)
- DMT (ayahuasca)
- Salvia divinorum
- Quetamina (debatível)
- MDMA (debatível)
Os psicadélicos são medicamentos?
Afinal, serão os psicadélicos medicamentos?
No debate atual, o termo "medicina psicadélica" tem vindo a ganhar cada vez mais espaço, e há quem se refira aos psicadélicos sobretudo – ou apenas – como uma forma de tratamento.
Contudo, apesar de reconhecer que os psicadélicos possuem, de facto, valor terapêutico, defendo que não deviam ser vistos sobretudo como medicamentos. Na verdade, deveriam ser encarados como uma categoria própria e distinta.
De seguida, explico porquê.
O valor do divertimento
Em muitas culturas modernas, o valor da diversão é frequentemente subestimado. No seu livro "The Sociology Of Fun", Ben Fincham destaca que a diversão ocupa uma posição paradoxal na sociedade (2017). Muitas vezes, é vista como algo supérfluo ou pouco sério, associada à preguiça, tempos livres e baixa produtividade. No entanto, é igualmente reconhecido que se trata de um dos maiores prazeres da vida, indispensável para a felicidade. Porém, costumamos encarar a diversão como um luxo a que só nos podemos permitir depois de ultrapassar as devidas dificuldades.
As razões que levam a que a diversão seja pouco valorizada e até considerada irrelevante são várias e complexas, pelo que não as abordaremos aqui em detalhe. Para efeitos deste artigo, consideremos simplesmente que a diversão tem valor em si mesma.
Partindo deste princípio: a experiência psicadélica é, maioritariamente, divertida.
É o primeiro motivo pelo qual devemos encarar os psicadélicos como algo muito além de meros medicamentos. Eles oferecem diversão. Uma experiência psicadélica pode ser entusiasmante, tornar o mundo mais interessante e especial e dar-nos novas perspetivas sobre nós próprios.
Os medicamentos tradicionais não provocam isto. Funcionam sobretudo para prevenir problemas de saúde ou ajudar na recuperação. Tomar medicação não é, por natureza, uma atividade divertida; a maioria das pessoas só o faz por necessidade, para tratar ou curar alguma condição.
Embora os psicadélicos possam ser usados terapeuticamente, muitas pessoas recorrem a eles mesmo estando mentalmente saudáveis — não como medicamento, mas simplesmente pelo prazer da experiência.
Os psicadélicos vão além da cura
Dito isto, as substâncias psicadélicas têm um potencial que vai muito além da simples função terapêutica.
O objetivo da medicina é devolver-nos a um estado considerado “normal” e saudável. A prática médica procura restaurar ou manter-nos nesse estado ou, de outra forma, atenuar os efeitos negativos de uma doença ou condição.
No entanto, a medicina não tem como propósito levar-nos além desse estado normal e sóbrio — mas é precisamente isso que os psicadélicos proporcionam. E não é uma consequência acidental, mas sim a razão pela qual muitos optam por experimentá-los.
Até mesmo uma pessoa perfeitamente saudável e satisfeita com a sua vida pode não só desfrutar da experiência psicadélica, como também obter benefícios dela. O mesmo não se pode afirmar da maioria dos medicamentos tradicionais, que poderão ter algum valor preventivo, mas dificilmente mudariam de imediato a vida desta pessoa.
Isto não significa que todas as pessoas, saudáveis e felizes ou não, devam usar psicadélicos; significa apenas que mesmo quem já se sente pleno pode encontrar neles algo de valor — frequentemente, um valor considerável.
Voltando ao ponto anterior: até as pessoas mais realizadas e de bem com a vida podem tirar partido de experiências diferentes, enriquecedoras ou marcantes. Não porque tragam cura, mas porque acrescentam sentido e valor à vida, independentemente de quanto já exista.
Enquanto a medicina pretende restaurar o equilíbrio e afastar o mal-estar, os psicadélicos permitem-nos ir além desse limite.
Tripar
O motivo pelo qual os psicadélicos são divertidos, e também porque têm valor para lá do seu uso terapêutico, é que nos proporcionam experiências de "viagem". Neste contexto, "viajar" significa tanto as revelações mentais proporcionadas pelo efeito das substâncias, como as alterações sensoriais que sentimos sob a sua influência.
Quer se veja a experiência psicadélica como algo místico ou apenas como um estado alterado e inusitado do cérebro, poucos são os que, vivendo-a nas condições apropriadas, a avaliam negativamente depois.
Ainda que a "viagem" possa ter benefícios medicinais, reduzi-la apenas a esse âmbito, ou considerá-la unicamente como um efeito secundário de um fármaco com potencial terapêutico, é um erro que desvia do verdadeiro significado destas experiências.
O estado psicadélico é algo raro e extraordinário, só possível através de algumas substâncias específicas, e tem um valor intrínseco próprio.
Psicadélicos como medicina
Tudo indica que os psicadélicos podem, de facto, ter valor medicinal!
Investigação científica revela que estas substâncias têm um enorme potencial no apoio ao tratamento de várias condições, especialmente problemas de saúde mental, incluindo dependências.
Psicadélicos no combate à depressão
O tratamento da depressão é uma das áreas onde os psicadélicos têm revelado maior potencial. Um estudo da Universidade Johns Hopkins demonstrou que a maioria dos participantes manteve os efeitos antidepressivos da psilocibina até 12 meses após a intervenção (Gukasyan, Davis e Griffiths, 2022). Importa referir, contudo, que este ensaio contou apenas com 27 pessoas, sendo, por isso, insuficiente para tirar conclusões generalizadas. Ainda assim, em conjunto com outras investigações, este resultado parece estar em linha com uma tendência recorrente.
Quanto ao modo como os psicadélicos atuam na depressão, a explicação permanece pouco clara. Existem diversas hipóteses. Por um lado, os efeitos reveladores destas substâncias, sobretudo quando combinados com psicoterapia, podem ajudar os indivíduos a identificar e romper padrões antigos, assim como a enfrentar questões que habitualmente evitam ou não conseguem resolver. Ao nível biológico, muitos aspetos continuam por esclarecer. Uma teoria sugere que os psicadélicos atuam sobre o recetor 5-hidroxitriptamina 2A (5-HT2AR), promovendo a plasticidade neural (Vargas, 2023). Embora neurotransmissores como a serotonina também se liguem a estes recetores, não parece haver um aumento da neuroplasticidade nesses casos.
O que distingue estas substâncias parece ser a capacidade de atravessarem a membrana celular e penetrarem no interior dos neurónios, em vez de se limitarem a interagir à superfície. Investigações sugerem que, quando os compostos entram efetivamente na célula, existe uma correlação clara com o aumento da neuroplasticidade.
Psicadélicos no tratamento da dependência
Os psicadélicos estão também a ser estudados pelo seu potencial no tratamento e controlo de dependências, ou perturbações de uso de substâncias (SUD).
Apesar de não existir ainda total clareza sobre os mecanismos envolvidos, acredita-se que possam ser semelhantes aos observados na depressão — promovendo uma maior neuroplasticidade. Para além disso, pensa-se que mudanças na conectividade das redes cerebrais, no processamento da recompensa e das emoções, na ligação social, no autoconhecimento e até em experiências de carácter místico desempenhem um papel fundamental na forma como as pessoas alteram a sua relação com substâncias aditivas (Rieser, Herdener e Preller, 2022).
Psicadélicos: medicinais, mas muito mais além disso
Está mais do que reconhecido que os psicadélicos têm um papel a desempenhar na medicina e que, em determinados contextos, podem ser eficazes como tratamentos médicos. No entanto, vê-los apenas ou principalmente como medicamentos é limitar o seu potencial, já que oferecem muito mais do que a simples capacidade de curar.
O objetivo dos medicamentos é tratar ou prevenir doenças e permitir que uma pessoa regresse ao seu nível de saúde habitual. Os psicadélicos podem, em certos casos, contribuir para esse efeito, mas o seu real valor vai além disso. Estas substâncias têm a capacidade de proporcionar experiências transformadoras e enriquecedoras, que ultrapassam o conceito habitual de saúde. Por isso, é importante que os psicadélicos sejam encarados primeiro pela sua própria natureza e apenas depois enquanto possíveis medicamentos.
- MAXEMILIANO V. VARGAS. (16 Feb 2023). Psychedelics promote neuroplasticity through the activation of intracellular 5-HT2A receptors - https://www.science.org
- Natalie Gukasyan. (Fevereiro 15, 2022). Efficacy and safety of psilocybin-assisted treatment for major depressive disorder: Prospective 12-month follow-up - https://journals.sagepub.com
- Rieser, Nathalie M., Herdener, Marcus, Preller, & Katrin H. (2021). Psychedelic-Assisted Therapy for Substance Use Disorders and Potential Mechanisms of Action - https://link.springer.com
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