
O papel da genética na intensidade dos efeitos
Desde a tolerância à variedade de canábis até ao próprio ADN? Investigações destacam os complexos factores genéticos que podem influenciar o efeito causado.
Já está a sentir o efeito? Esta pergunta popular tem uma resposta mais complexa do que aparenta.
A canábis afeta-nos de inúmeras formas. Pode ajudar-nos a relaxar, animar o nosso estado de espírito ou até mesmo aliviar sintomas de doenças crónicas. De pessoa para pessoa, a relação com a canábis é única. Duas pessoas que consomem a mesma variedade podem ter experiências totalmente diferentes. Afinal, porquê?
O quanto sentimos o efeito pode depender de diversos fatores. Estudos recentes sugerem que muitos deles podem ser de origem genética.
Fatores comuns que influenciam o efeito
Para começar, vamos abordar o essencial antes de entrarmos nas questões mais avançadas. Já se perguntou porque é que o seu amigo ficou completamente pedrado na noite passada e você quase não sentiu nada? Uma (ou mais) destas razões comuns pode estar por trás disso.
Tolerância
Ah, tolerância. É como uma sombra persistente que nunca larga de ti e está sempre pronta para estragar o efeito da canábis. Se já consomes com frequência, apostamos que já conheces bem este drama. Se ainda não te aconteceu, deixa-nos explicar-te este clássico dilema.
Quando utilizas canábis regularmente, o teu organismo vai-se “habituando”, tornando necessário consumir quantidades maiores para sentir os mesmos efeitos de antes. No caso da canábis pode ser chato, mas não representa perigo real.
Se reparares que a tua tolerância está a aumentar, talvez seja boa ideia fazeres uma pausa. Estudos demonstram que evitar o consumo durante alguns dias pode ajudar a baixar a tua tolerância.
Existem também outros fatores que influenciam o teu efeito e a experiência geral com canábis. Se estás a tentar perceber porque nem sempre te sentes como gostarias (ou simplesmente não sentes nada), deixa estas perguntas para ti próprio:
Comeste alguma coisa recentemente?
Se te estás a preparar para consumir canábis mas passaste o dia inteiro sem comer, é provável que acabes por te sentir tonto e ansioso. Isto pode ser ainda mais notório se optares por comestíveis.
O momento da última refeição influencia a forma como o teu organismo absorve o THC e o CBD. Estudos indicam que tomar canábis de estômago vazio acelera os efeitos, mas estes tendem a ser mais breves, menos intensos e menos equilibrados.
Para evitar efeitos indesejados, segue o conselho habitual: consome sempre com algum alimento. E não, a "parte do bolo" nos space cakes não conta.
Que outras substâncias consumiste?
Combinar diferentes substâncias pode ser perigoso e não é algo que recomendamos. Isto aplica-se tanto a medicamentos prescritos, como de venda livre, bebidas alcoólicas ou drogas recreativas. No entanto, consumir canábis juntamente com a tua medicação habitual nem sempre é prejudicial. O importante é estares bem informado sobre questões de segurança e possíveis interacções. O teu farmacêutico pode esclarecer-te e ajudar-te neste processo.
No fim de contas, cada um faz as suas escolhas, e és tu que decides o que colocas no teu corpo. Mas, se sentes que o efeito da erva está diferente do habitual, pode valer a pena pensar noutras substâncias que ingeriste e que podem estar a influenciar a experiência.
Estás sobre stress?
Se tens andado mais nervoso ultimamente, a cannabis pode ajudar-te a relaxar e a aliviar a ansiedade. No entanto, é importante consumir com moderação, pois a experiência pode variar.
Dependendo do teu nível de stress, há quem acabe por sentir ainda mais ansiedade ou até paranóia. Por isso, se estás sob pressão no trabalho ou se vais experimentar uma variedade nova, o melhor é ir com calma e perceber primeiro como o corpo reage.
Se percebes que te sentes regularmente desconfortável ou inquieto, talvez não seja só do stress. Cientistas do Reino Unido identificaram certos genes que podem aumentar a sensibilidade a alterações visuais, paranóia e até episódios psicóticos provocados pela cannabis.
E isto leva-nos a...
O papel recentemente descoberto do ADN
O corpo humano é uma máquina bela e complexa. Desde a cor dos olhos às preferências alimentares, passando pela predisposição ou resistência a certas doenças, tudo está inscrito no nosso ADN e compõe o nosso perfil genético único.
Ao que parece, o efeito que sentimos com certas substâncias também é influenciado por estes fundamentos biológicos. Estudos recentes mostram que os nossos genes podem ter um papel importante na forma como cada pessoa reage ao consumo de canábis. Os efeitos podem ser tão diferentes quanto nós próprios somos.
ADN e o sistema endocanabinoide
A principal forma como a cannabis actua no nosso organismo é através do sistema endocanabinoide. Este sistema é composto essencialmente por dois elementos: neurotransmissores chamados endocanabinoides e os recetores aos quais eles se ligam.
Estes recetores estão presentes em células por todo o corpo, razão pela qual a cannabis tem efeitos tão variados nos nossos sistemas biológicos. Os fitocanabinoides, como o THC e o CBD, são os compostos presentes na planta que se ligam a estes recetores, imitando os endocanabinoides que o nosso organismo produz naturalmente.
Os recetores CB1 e CB2 são fundamentais no sistema endocanabinoide. O THC atua maioritariamente sobre o recetor CB1, responsável pelos efeitos psicoativos. Esta interação pode ainda aumentar o apetite, reduzir a dor e aliviar sintomas de náusea. O CBD, por seu lado, atua de forma mais indireta, mostrando potencial no tratamento da ansiedade, de certas formas de epilepsia e de doenças autoimunes.
Mas de que forma é que isto está relacionado com o nosso ADN?
Variações nos recetores CB1 e CB2
Os recetores de que temos vindo a falar são, basicamente, proteínas codificadas pelo nosso genoma. Tal como acontece com a cor dos olhos, alterações nesse código podem provocar resultados diferentes. As variações no nosso ADN podem levar à produção de proteínas que funcionam de maneiras distintas.
Até ao momento, os cientistas já identificaram 15 variações na proteína do recetor CB1 humano, bem como 7 mutações no recetor CB2. Algumas destas diferenças podem influenciar a forma como sente os efeitos do THC e de outros compostos do cannabis. A FAAH é outra enzima essencial, responsável pela decomposição das moléculas do sistema endocanabinóide. Existem 11 mutações identificadas no gene FAAH humano que podem afetar o modo como o seu organismo processa o cannabis.
Portanto, se é aquela pessoa que fica sempre excessivamente "pedrada", não se sinta envergonhado. A culpa pode mesmo estar nos seus genes!
Mutações no fígado
O fígado desempenha um papel crucial na transformação das muitas substâncias que entram no nosso organismo, incluindo a canábis. Esta função torna-se ainda mais relevante quando a planta é consumida por via oral. Por isso, se és fã de comestíveis, fica atento.
Existem enzimas fundamentais no fígado responsáveis por metabolizar o THC. O gene responsável pelo “molde” destas enzimas tem mais de 50 variantes conhecidas — chama-se CYP2C9. Não, não é uma personagem do mais recente Star Wars. E sim, já é possível descobrir que variante tens recorrendo a um teste genético feito em casa!
Se tiveres a variante CYP2C9*3, que é mais frequente entre pessoas de ascendência europeia, podes processar o THC mais lentamente. Consequência? O efeito da canábis pode durar mais tempo e ser mais intenso. Um estudo científico analisou esta situação: investigadores constataram que participantes com duas cópias desta variante apresentavam níveis de THC três vezes superiores em comparação com quem não tinha a mutação.
Outros genes em jogo
Quando falamos de canábis, as diferentes variações existentes no nosso ADN podem realmente influenciar a forma como reagimos à planta ou o grau de intensidade dos seus efeitos. Apesar das descobertas serem cada vez mais intrigantes, a investigação científica ainda está em curso e ainda não conseguimos compreender todas as consequências destas descobertas. Quem sabe, talvez num futuro próximo, um simples teste à saliva permita obter um perfil genético completo relacionado com o consumo de canábis. Por agora, isso ainda não é possível.
Há, no entanto, algo claro: todos somos diferentes. A canábis actua nos nossos organismos de maneiras únicas e complexas. Felizmente, quanto mais aprendemos, mais preparados estamos. A investigação científica é uma grande aliada para o conhecimento, e conjugada com a experiência pessoal, pode ajudar-nos a encontrar a forma que melhor se adapta a cada um de nós quando utilizamos canábis.
No entretanto, sejamos compreensivos. Partilhar conhecimento e ter empatia são valores essenciais entre consumidores. Se o teu amigo estiver a ficar ansioso enquanto tu estás relaxado, tenta não fazer pouco dele. Explica-lhe que, afinal, pode ser genético!
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